domingo, 24 de novembro de 2013

Envelhecer

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.

Mário Quintana
no livro Poesias

Arte de Fumar

 Desconfia dos que não fumam: esses não têm vida interior, não têm sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar...

Mário Quintana
no livro Poesias

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

(...) Mais uma vez, nas suas hesitações confusas, o que a tranquilizou foi o que tantas vezes lhe servia de sereno apoio: é que tudo o que existia, existia com uma precisão absoluta e no fundo o que ela terminasse por fazer ou não fazer não escaparia dessa precisão; aquilo que fosse do tamanho da cabeça de um alfinete, não transbordava nenhuma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete: tudo o que existia era de uma grande perfeição. Só que a maioria do que existia com tal perfeição era, tecnicamente, invisível: a verdade, clara e exata em si própria, já vinha vaga e quase insensível à mulher.

Clarice Lispector
em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

o velho leon e natália em coyoacán

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo

Paulo Leminski
em Polonaises

pareça e desapareça

  Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
  O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
  Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
  O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.
  A dor, sobretudo,
parecia prazer.
  Parecer era tudo
que as coisas sabiam fazer.
  O próximo, eu mesmo.
Tão fácil ser semelhante,
  quando eu tinha um espelho
pra me servir de exemplo.
  Mas vice-versa e vide a vida.
Nada se parece com nada.
  A fita não coincide
Com a tragédia encenada.
  Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.

Paulo Leminski
em Distraídos venceremos

volta em aberto

Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Quem parte leva um jeito
de quem traz a alma torta.
Quem bate mais na porta?
Quem parte ou quem torna?

Paulo Leminski
em Distraídos venceremos

bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas

Paulo Leminski
em Distraídos venceremos

domingo, 17 de novembro de 2013

Quem nasce com coração?
Coração tem que ser feito.
Já tenho uma porção
Me infernando o peito.

Com isso ninguém nasça.
Coração é coisa rara,
Coisa que a gente acha
E é melhor encher a cara.

Paulo Leminski
em Caprichos & Relaxos

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

"(...) não é mesmo com bons sentimentos que se faz literatura: a vida também não. Mas há algo que não é bom sentimento. É uma delicadeza de vida que inclusive exige a maior coragem para aceitá-la."

Clarice Lispector
em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

Parada Cardíaca

essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento

Paulo Leminski
muito romântico
meu ponto pacífico
fica no atlântico

Paulo Leminski

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

(...) E era bom. "Não entender" era tão vasto que ultrapassava qualquer entender - entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não-entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez.
 Mas de vez em quando vinha a inquietação insuportável: queria entender o bastante para pelo menos ter mais consciência daquilo que ela não entendia. Embora no fundo não quisesse compreender. Sabia que aquilo era impossível e todas as vezes que pensara que se compreendera era por ter compreendido errado. Compreender era sempre um erro - preferia a largueza tão ampla e livre e sem erros que era não-entender. Era ruim, mas pelo menos se sabia que se estava em plena condição humana.
 No entanto às vezes adivinhava. Eram manchas cósmicas que substituíam entender.

Clarice Lispector
em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres