segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

na estrada desta cama

princesa
que fogueira é essa acesa
na noite tão fumada do seu quarto
se lá fora uiva o vento
e outros bichos bem mais gelados
apodrecem por todos os séculos
como aquela paixão desenfreada
que se foi gargalhando lágrimas
pelo galo gorgolejante dos dias
ou que não era paixão
nem mesmo um estrelado tesão
conforme você me dizia
naquela caminhada sem caminho
mas um amor denso
lava represada de milênios
e leve como a nuvem
que vestia vossas mutantes sintonias

sim meu amigo
eu amava um fulgurante desespero
era bem mais que o absoluto
a gente não se encontra
em parte alguma
e o amor
esta lua suavizante nas ossadas
você me entende
essas transas que jamais entenderíamos

princesa
vou lhe dizer uma coisa
que ideia alguma
que música alguma
encerraria em seus espelhos de encantamento
vou lhe dizer
que vocês deveriam se sentar agora
às margens dessa utopia
e se beijarem e se lamberem
e se comerem ainda
veja quantos peixes se evaporando
árvores inclinadas para o invisível
nem quando nem nunca
princesa
tanta ternura enjaulada
você tão fumada tão descabelada
pássaro aflito na memória
secas florestas fosforescentes

certo meu amigo
mas tire a mão da minha bunda

Afonso Henriques Neto
em Tudo Nenhum 

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Reflexão nº 1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.


Murilo Mendes

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

quarto

neste mesmo quarto
há muito tempo
você me ensinou
novamente a nudez
e então chamamos isso de amor
mas era exagero

Ana Martins Marques
no livro Arquitetura de Interiores
disponível no projeto Leve um livro,
aqui: www.leveumlivro.com.br

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

domingo, 23 de novembro de 2014

Um Trem Pode Esconder Outro

Um Trem Pode Esconder Outro
(sinal num cruzamento de trem no Kenya)

Num poema uma linha pode esconder outra linha,
Como num cruzamento, um trem pode esconder outro trem
Isto é, se você está esperando para atravessar
Os trilhos, espere ao menos um momento depois que
O primeiro trem tiver partido. Também ao ler
Espere até você ter lido a linha seguinte -
Só então é seguro prosseguir a leitura.
Numa família uma irmã pode ocultar outra,
Então, quando você estiver paquerando uma delas, é melhor ter todas à vista
Caso contrário, ao descobrir uma você pode já estar amando outra
Se você é mulher, um pai ou um irmão podem esconder
O homem que você esperou para amar
Assim, sempre em frente a uma coisa, a outra
Como as palavras à frente dos objetos, sentimentos e ideias.
Um desejo pode esconder outro. E a reputação de alguém
Pode esconder a reputação de outro. Um cão pode ocultar
Outro num gramado, e se você consegue fugir do primeiro não necessariamente está a salvo;
Um lilás pode esconder outro e então vários lilases e na Via Ápia uma sepultura
Pode esconder uma quantidade de outras sepulturas. No amor, uma censura pode esconder outra,
Uma pequena queixa pode esconder outra enorme.
Uma injustiça pode esconder outra - um colono pode esconder outro
Um uniforme vermelho gritante outro e, outro, uma coluna inteira. Um banho pode apagar outro banho
Como quando depois de tomar banho você sai pra chuva
Uma ideia pode esconder outra: A vida é simples
Esconder a vida é incrivelmente complexo, como na prosa de Gertrude Stein
Uma linha esconde outra e é outra ao mesmo tempo. E no laboratório
Uma invenção pode esconder outra invenção,
Uma noite pode esconder outra, uma sombra, um ninho de sombras
Um vermelho escuro, ou um azul, ou um púrpura - esta é uma pintura
Feita depois de Matisse. Alguém espera nos trilhos até que eles tenham passado,
Esses duplos escondidos ou, às vezes, parecidos. Um gêmeo idêntico
Pode esconder o outro. E pode mesmo haver mais ali! O obstetra
olha para o Valley of the Var. Eu e minha mulher vivíamos ali, mas
Uma vida escondeu outra vida. Então ela se foi e eu fiquei.
Uma mãe agitada esconde uma filha desengonçada. A filha por sua vez esconde
Sua própria filha agitada. Elas estão em
Uma estação de trem e a filha está carregando uma bolsa
Tão maior que a bolsa da mãe que acaba por escondê-la com êxito.
Ao se oferecer para carregar a bolsa da filha, vê-se confrontando pela mãe
E obrigado a carregar sua bolsa também. Alguém que pede carona
Pode esconder outra pessoa de propósito e uma xícara de café
Outra também até que a pessoa fique ultra agitada. Um amor pode esconder outro amor ou o mesmo amor
Como quando "eu te amo" soa muito falso e encontra-se um
Amor melhor à espreita, como quando "estou cheio de dúvidas"
Esconde "tenho certeza de apenas uma coisa e é isso"
E também um sonho pode esconder outro como todos sabem, sempre.
No Jardim do Edén
Adão e Eva podem esconder os verdadeiros Adão e Eva.
Jerusalém podem esconder outra Jerusalém.
Quando você chega a algo, pare para deixá-lo passar
Só então você poderá ver o que mais há ali. Em casa, não importa onde,
Caminhos internos apresentam perigo também; uma memória
Certamente esconde outra, de que fala aquela memória,
Como uma sucessão eterna para trás de entidades contempladas. Ao terminar de ler "Uma Viagem Sentimental" procure ao seu redor o "Tristam Shandy", e veja se ele
Ainda está na estante, ele deve estar, e estará ainda mais forte
E mais denso e, consequentemente, tão escondido como Santa Maria Maggiore
Deve estar escondida por igrejas similares em Roma. Uma calçada
Pode esconder outra, como quando você adormece ali, e
Uma canção pode esconder outra canção: por exemplo "Stardust"
Esconde "What have they done to the rain?" Ou vice-versa. Uma batida no andar de cima
Esconde o batuque da percussão. Um amigo pode esconder o outro, você se senta ao pé de uma árvore
Com um e quando você se levanta para ir embora encontra outro
Com quem você teria preferido passar as horas conversando. Um professor,
Um médico, um êxtase, uma doença, uma mulher, um homem
Podem esconder outro. Pare para deixar o primeiro passar.
Você pensa Agora é seguro passar e então você é atropelado pelo seguinte.
Pode ser importante
Ter esperado pelo menos um momento para ver o que já estava ali.


Kenneth Koch
há naquela casa um quarto
e talvez ainda a cama
em que você morreu
trezentas vezes
raízes brotavam do teu corpo
e invadiam a tarde: nunca
o tempo foi tão fundo
na sombra de um vivente
o gozo o parto a morte
entre as mesmas margens:
dobras de um lençol em branco
que teu corpo descrevia
a tarde agora é outra: mora
outro tempo no teu tempo:
o que ficou de ti foi essa sombra
que fala entre outras mil paredes
Carlos Moreira

sábado, 22 de novembro de 2014



se eu quiser
o hibisco é anil
a coruja é piscina
o verão é marinho
o sangue é turquesa
a maçã é celeste
o touro é aquário
e a floresta é marina
com bromélias índigo
mas o amor só muda de cor
se você também azul
Anelis Assumpção

terça-feira, 9 de setembro de 2014

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Happy New Year

Mira, no pido mucho,
solamente tu mano, tenerla
como un sapito que duerme así contento.
Necesito esa puerta que me dabas
para entrar a tu mundo, ese trocito
de azúcar verde, de redondo alegre.
¿No me prestas tu mano en esta noche
de fin de año de lechuzas roncas?
No puedes, por razones técnicas. Entonces
la tramo en aire, urdiendo cada dedo,
el durazno sedoso de la palma
y el dorso, ese país de azules árboles.
Así la tomo y la sostengo, como
si de ello dependiera
muchísimo del mundo,
la sucesión de las cuatro estaciones,
el canto de los gallos, el amor de los hombres.

                                                                                                                                31/12/1951.

Julio Cortázar
en Salve El Crepúsculo

After Such Pleasures

Esta noche, buscando tu boca en
otra boca,
casi creyéndolo, porque así de
ciego es este río
que me tira en mujer y me
sumerge entre sus párpados,
qué tristeza nadar al fin hacia la
orilla del sopor
sabiendo que el placer es ese
esclavo innoble
que acepta las monedas falsas,
las circula sonriendo.
Olvidada pureza, cómo quisiera
rescatar
ese dolor de Buenos Aires, esa
espera sin pausas ni esperanza.
Solo en mi casa abierta sobre el
puerto
otra vez empezar a quererte,
otra vez encontrarte en el café de
la mañana
sin que tanta cosa irrenunciable
hubiera sucedido.
y no tener que acordarme de este
olvido que sube
para nada, para borrar del
pizarrón tus muñequitos
y no dejarme más que una
ventana sin estrellas.

Julio Cortázar
en Salvo El Crepusculo

POLICRONIAS

Es increíble pensar que hace doce años
cumplí cincuenta, nada menos.
¿ Cómo podía ser tan viejo
hace doce años?
Ya pronto serán trece desde el día
en que cumplí cincuenta. No parece
posible.
El cielo es más y más azul,
y vos más y más linda.
¿No son acaso pruebas
de que algo anda estropeado en los relojes?
El tabaco y el whisky se pasean
por mi cuarto, les gusta
estar conmigo. Sin embargo
es increíble pensar que hace doce años
cumplí dos veces veinticinco.
Cuando tu mano viaja por mi pelo
sé que busca: las canas, vagamente
asombrada. Hay diez o doce,
tendrás un premio si las encontrás.
Voy a empezar a leer todos los clásicos
que me perdí de viejo. Hay que apurarse,
esto no te lo dan de arriba, falta poco
para cumplir trece años desde
que cumplí los cincuenta.
A los catorce pienso
que voy a tener miedo,
catorce es una cifra
que no me gusta nada
para decirte la verdad.

                                                                                                                       Nairobi, 1976

Julio Cortázar
en Salvo El Crepusculo

domingo, 17 de agosto de 2014

nascer: essa gripe
de líquido repouso
sete dias sete vidas
depois: o corpo o corpo
(limite de carne e sonho
entre um abismo e outro)
não ser: esse câncer
na memória: esse grito
que ninguém ouviu
e o tenho dito
Carlos Moreiravia Facebook

quarta-feira, 30 de julho de 2014

sua cherry bomb

viagem de carro 
chuva fina na estrada
em turnê
internacional

o automóvel está cheio
de sons
de beijos
de rostos tão conhecidos

acordar numa cama de hotel
com lençol no corpo
e patins nos pés

o vidro do carro pinta manchas
no colo e na testa
selvagens e sem sutiã

cherie
o amor é uma ampulheta
e se não nos detivermos?
que tal nós nos derretermos?

vorazes
todos
delirar é sobrevivência

a melhor cidade
da américa do sul
você tão precisa
você precisa

falando da vida
beijando virilha
nos preenchendo

os grandes espíritos se encontram
todo canalha é magro
nós não temos vergonha.


Aline Miranda

sexta-feira, 25 de julho de 2014

139.

 Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
 Há muito tempo que não só não escrevo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
 Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora - visto com ouvido - o som súbito do eléctrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
 Há muito tempo que não sou eu.

Fernando Pessoa
no Livro do Desassossego

sexta-feira, 18 de julho de 2014

 Para relatar a história de minha vida, devo recuar alguns anos. Se me fosse possível, deveria retroceder ainda mais à primeira infância, ou mais ainda aos primórdios de minha ascendência.
 Os poetas, quando escrevem novelas, costumam proceder como se fossem Deus e pudessem abranger com o olhar toda a história de uma vida humana, compreendendo-a e expondo-a como se o próprio Deus a relatasse, sem nenhum véu, revelando a cada instante sua essência mais íntima. Não posso agir assim, e os próprios poetas não o conseguem. Minha história é, no entanto, para mim, mais importante do que a de qualquer outro autor, pois é a minha própria história, e a história de um homem é não a de um personagem inventado, possível ou inexistente em qualquer outra forma, mas a de um homem real, único e vivo. Hoje sabe-se cada vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Se não passássemos de indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias. Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da Natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres humanos o espírito adquiriu forma, em cada um deles a criatura padece, em cada qual é crucificado um Redentor.
 Poucos são hoje os que sabem o que seja um homem. Muitos o sentem e, por senti-lo, morrem mais aliviados, como eu próprio, se conseguir terminar este relato.
 Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos.
 A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos ou formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns: as mães; todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um - resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial - tende a seu próprio fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se.

Herman Hesse,
na introdução do livro Demian

terça-feira, 8 de julho de 2014

"No fundo, poderíamos ser como na superfície", pensou Oliveira, "mas teríamos que viver de outra maneira. E o que quer dizer viver de outra maneira? Talvez viver absurdamente para acabar com o absurdo, sair de si mesmo com tal violência que o salto acabasse nos braços de outro. Sim, talvez o amor, mas o otherness dura para nós o que dura uma mulher, e além disso só no que toca a essa mulher. No fundo, não há otherness, apenas o agradável togetherness. É certo que isso já é alguma coisa..." Amor, cerimônia ontologizante, doadora de ser. E por isso lhe ocorria agora aquilo que na verdade lhe deveria ter ocorrido logo no início: sem se possuir a si mesmo, jamais poderia possuir a outridade. E, afinal, quem é que se possuía de verdade? Quem é que tinha a perfeita consciência de si mesmo, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou no matrimônio para estar pelo menos só-entre-os-demais? Assim, paradoxalmente, o cúmulo da solidão conduzia ao cúmulo do gregarismo, à grande solidão das companhias alheias, ao homem só na sala de espelhos e dos ecos. Todavia, pessoas como ele e tantas outras, que se aceitavam a si mesmas (ou que se repeliam, mas conhecendo-se de perto), entravam sempre no pior paradoxo, estar talvez à beira da outridade e não poder alcançá-la. A verdadeira outridade feita de delicados contatos, de maravilhosos ajustes com o mundo, não podia ser cumprida por um só lado: a mão estendida deveria receber outra mão, vinda de fora, vinda do outro.

Julio Cortázar
em O Jogo da Amarelinha, capítulo 22

sábado, 28 de junho de 2014

Ode al día feliz

ESTA vez dejadme
ser feliz,
nada ha pasado a nadie,
no estoy en parte alguna,
sucede solamente
que soy feliz
por los cuatro costados
del corazón, andando,
durmiendo o escribiendo.
Qué voy a hacerle, soy
feliz.
Soy más innumerable
que el pasto
en las praderas,
siento la piel como un árbol rugoso
y el agua abajo,
los pájaros arriba,
el mar como un anillo
en mi cintura,
hecha de pan y piedra la tierra
el aire canta como una guitarra.
Tú a mi lado en la arena
eres arena,
tú cantas y eres canto,
el mundo
es hoy mi alma,
canto y arena,
el mundo
es hoy tu boca,
dejadme
en tu boca y en la arena
ser feliz,
ser feliz porque si, porque respiro
y porque tú respiras,
ser feliz porque toco
tu rodilla
y es como si tocara
la piel azul del cielo
y su frescura.
Hoy dejadme
a mí solo
ser feliz,
con todos o sin todos,
ser feliz
con el pasto
y la arena,
ser feliz
con el aire y la tierra,
ser feliz,
contigo, con tu boca,
ser feliz.

Pablo Neruda

sexta-feira, 27 de junho de 2014

ocupação

o ato de escrever
ocupa metade da minha prosa e metade da minha vida.
mando um bilhete pra ele: vê se desocupa a
outra metade.

preocupação

bilhete não respondido: que ameaças
são essas?

desocupação

preciso sair da outra metade para ceder
lugar ao iminente ato de foder.

Ana Cristina César
em antigos e soltos

quinta-feira, 26 de junho de 2014

UMA COCA-COLA COM VOCÊ

UMA COCA-COLA COM VOCÊ

é ainda melhor que uma viagem a Guadalajara, Paraty, Barcelona, São Luís
ou que ficar completamente chapado com a beleza do Stonehenge
em parte porque neste vestido florido você lembra uma Jeanne Hebuterne melhor & mais feliz
em parte porque eu te amo muito, em parte porque você gosta tanto de cerveja forte
em parte por causa dos plátanos siderais que, entre a rua central & a universidade, dançam como loucos, como se pudessem ver-se refletidos em seus olhos
em parte pelo segredo que nos semeia um sorriso quando pertos de pessoas & estátuas
é difícil acreditar, quando estou com você, que existam coisas tão paradas
tão solenes desagradáveis & definitivas quanto estátuas quando bem em frente
no sol a pino de São Paulo ao meio-dia, periferia afora, nós caminhamos pra lá & pra cá
como uma árvore que respira pelas suas castanhas

& a exposição de retratos parece não possuir rosto algum, só tinta
& você acha um barato o fato de que alguém tenha se dado ao trabalho de pintá-los
olho
para você & prefiro seu rosto a todos os retratos do mundo
à exceção, talvez, do Objeto de Hoag que de qualquer modo está no Museu do Constelário Noturno
aonde, ainda bem, vamos todos os dias & espero que possamos ir juntos pelo resto de nossas vidas
& isso de você se mover tão lindamente lê tão bem o anarquismo
assim com em nossa casa quase nunca penso no Nu à contre-jour ou
num ensaio nalgum desenho de Frank Frazetta ou Michelangelo que antes me alumbrava
& o que adianta aos Impressionistas tanta pesquisa
quando eles jamais encontraram a pessoa certa para, avarandado à sombra de uma árvore, enamorar-se de mais um belo suicídio do sol
ou por sinal John Romita Jr. que não riscou a armadura tão bem quanto
o coração dentro da armadura

acho que todos eles perderam uma experiência maravilhosa
& eu não vou desperdiçar
é por isso que estou aqui, contando tudo isso pra você

FRANK O'HARA

Tradução Fabiano Calixto

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Ao som de Suzanne Veiga

Meu nome é Caio F. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você nas escadas.

Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia — eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy metal só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas.
 Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como — eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a mão.
 No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto — preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho nem castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio — tão cansado, tão causado — qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi de boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios — que importa?
 (Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio — virá, virá? — e mito não, já não preciso.)
Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukowskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como: eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinha medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espírito no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-se-dentro-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.
 Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza de que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes de estas palavras todas caírem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.

Caio Fernando Abreu
n'O Estado de São Paulo, 11/11/1987
retirada do livro A vida gritando nos cantos

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinicius de Moraes

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Desterro

Eu ia triste, triste, com a tristeza discreta dos fatigados,
com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse todo inteiro presente
no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
e era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta,
bracejava,
puxando com esforço vagões quase vazios,
com almas cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas,
e o comboio seguia,
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras,
como sabem ser duros os caminhos,
pelos quais a gente vai, só pensando na volta...
Coagulada em preto,
a noite isolou as coisas dentro da tarde,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais do trem...

João Guimarães Rosa
no livro Magma

domingo, 18 de maio de 2014

Elegia

Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez...

Não pude calçar, com beijos, os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim...
Mas é bem assim que os meus sonhos te possuem.

Guimarães Rosa
no livro Magma

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Bibliocausto

Que a minha mão não trema
ao deitar no fogo forte e primitivo
todos os traidores
que me deram veneno.

Queimarei o frio
geometrizador da vida
lapidada através de lentes bem polidas
(ah, o horror daquela pedra voando,
tangida pela mão de não sei que demônio,
e a pensar, pelo espaço, que ainda tem arbítrio!...)...

Queimarei o detrator,
maníaco e vaidoso,
que quis deter a vida numa câmara lenta,
para a tingir depois numa câmara escura
(ah, o inferno galopando às doidas,
nos cavalos sem freios
da vontade cega e sem destino!...)...

Queimarei o louco,
ébrio de orgulho,
raivoso de fraqueza,
que destilava haxixe em frascos verdes
na paisagem alpina
(ah, o prazer com que ainda o queimaria
em cada uma das voltas pavorosas
do seu Eterno Retorno!...)...

E só ficará comigo
o riso rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
Porque eu só preciso de pés livres,
de mãos dadas,
e de olhos bem abertos...

João Guimarães Rosa
no livro Magma

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever

Adília Lopes
em Florbela Espanca Espanca

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Idos sidos

Que é que fiz, não fiz, de mim?
Que é que fiz na vida, da vida?
Quem sou eu? Esse eu que me sou.

Minhas mãos me pendem soltas.
Inúteis para fazimentos.
Só servem para escrever, acarinhar.

Não sei dançar, nunca soube.
Olho, idiota, o céu estrelado.
Não conheço estrela nenhuma.

As árvores, tantíssimas, que vi,
Recordo inumeráveis, enormíssimas,
Não sei quem são.

Diante das flores me extasio.
Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.
A música clássica me atordoa, cansa.

Quem sou eu, septuagenário,
que esgoto meu tempo de me ser aqui?
Insciente, perplexo, inexplicado.

Só cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói.

Darcy Ribeiro
em Eros e Tanatos

MIM

O tempo transcorre em mim
Celeremente. Tão afoito que finda.
Acho que sei, afinal, a que vim.
E já me vou. Uma pena.
Não há tempo mais pra mim.
Volto à silente matéria cósmica
Que em mim, um dia, se organizou
Para me ser. Uma vez, uma vez somente.

Darcy Ribeiro
em Eros e Tanatos

segunda-feira, 21 de abril de 2014

22.

 A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da minha alma. Eu não podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos meus pensamentos.
 Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma criancinha que morreu sempre há muito tempo.
 Amar-te é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém escreverá sobre mim um poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino.

 Deus é o existirmos e isto não ser tudo.

Fernando Pessoa
no Livro do Desassossego

10.

E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.

Fernando Pessoa,
no Livro do Desassossego
De tanto te pensar, Sem Nome, me veio a ilusão,
A mesma ilusão

Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n'água.

Hilda Hilst
em Sobre a tua grande face

I

De cigarras e pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de estalagens da loucura.

Da carne de mulheres, querem nascer os homens.
E o poeta preexiste, entre a luz e o sem-nome.

Hilda Hilst,
em Via Espessa

quarta-feira, 2 de abril de 2014

7

 Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.
 Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

Julio Cortázar
em O Jogo da Amarelinha

segunda-feira, 31 de março de 2014

15.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma
y te pareces a la palabra melancolia.

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda
en Veinte Poemas de Amor Y Una Canción Desesperada

quinta-feira, 13 de março de 2014

tem dias, mãe
que sou tão fraca
que nem pareço feita
de carne
que nem pareço feita
de osso
que pareço feita
de nuvens
e precipito

Juliana Motter

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

De mim mesmo sei pouco. E olhando com serenidade a paisagem chego à conclusão de que é agradável sim, mar, areia, mas o que eu vejo justifica o estar aqui permanentemente? Resposta: você é livre para sair. Aí é que estão enganados. Ser livre para sair é assim: você chega senta se acomoda, e o outro diz: você é livre para sair. Ainda que você não queira você sai. É por isso que eu fico aqui. Ficando aqui não sou livre. Saindo, muito menos. Liberdade abre as asas sobre nós, tem poesia isso, mas isso sufoca, vejo sempre uma águia gigante roubando o espaço acima da minha cabeça, vejo sempre a asa me comprimindo, e por isso eu gostaria de voar porque subiria acima dessa eventualidade. Escuridão e cárcere. Ratazanas. Vida subindo pelos pés, vida chegando até o peito, vida na boca, a minha boca aberta sugando vida, eis algumas frases que de repente grito na noite, e nem sei bem o que tudo isso quer dizer, depois grito mais: sei tão pouco de ti, amiga morte, mas tremo tremo sabendo que tu só visita os vivos.

Hilda Hilst
no livro Kadosh
E de repente me vinha uma vontade de não querer mais nada, de apenas respirar, fruir a vida, olhar ao redor silenciosamente, mas o homem que me amava (acho que não amava) queria um rosto sempre alegrinho, queria um corpo que, como é que eu posso dizer, que respondesse saudavelmente, você sabe como é? Sei, sei, saudavelmente, sei. Ah, que vontade enorme de me sentar na terra e catar minhocas no chão, que vontade enorme de soltar a barriga, de mostrar os meus olhinhos como eles são: velhos e muito tristes. Que vontade enorme de dizer que eu tenho flebite (ah, é?) e que as minhas pernas doem quando eu faço o amor. Que vontade enorme eu tinha de dizer: meu amigo, que coisa tenho eu com você? É, parece muito bíblico. Ou então: você não sabe que eu preciso de solidão e de silêncio, que eu tenho muitas coisas dentro de mim mas que essas coisas também precisam de solidão e de silêncio para virem à tona, você não vê que é inútil você ficar tocando no meu corpo, que é inútil, que eu tenho vontade de ter asas, que o meu fogo é para outra coisa, meu Deus, para outra coisa, meu Deus, um outro fogo.

Hilda Hilst
no livro Fluxo-Floema.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Resíduo

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio,
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo fica um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco:
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco.
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço do cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

E me dizem - não
mais uma vez.
Caminho pela casa vazia
não tenho pais nem irmãos
e a minha dor mesquinha
individual intransferível
é infinitamente maior que a dor de todo o planeta.
Bebo. Tomo barbitúricos
telefono para números que não atendem
além da janela
uma lua cheia desgovernada
transita em Peixes.
O espelho mostra uma cara
de fundas olheiras, barba por fazer,
fios brancos nos cabelos
e uma teia cada vez mais densa
de pequenas rugas.
Fiz trinta e três anos ontem
choro e soluço alto
até o peito doer como uns socos.
Sou um cachorro doente
escondido neste quarto colorido
no meio duma cidade que não entendo
num planeta que não entendo
entre homens que nunca entendi.
Penso em cordas, giletes
comprimidos, facas. Não ousarei.
A cabeça desgoverna
errei de planeta
errei de corpo
esta história não me pertence
porque é tão triste
e no entanto é minha.
Como um camelo
mastigo a dor que inventei
para me distrair de um medo incompreensível.
São três horas da manhã
acordarei às três da tarde
a boca amarga
os rins doloridos
o coração pisoteado
cheio de humilhação.
Nunca mais telefonarei.
Me procurarás em vão
e serei frio como quem diz
- não preciso de tua piedade.
Sou para sempre um homem escuro
meu sorriso não conhecerá ninguém.
Não te quero mais
porque não me queres.
Escrevo para não me matar.
E imagino então
que um gênio sai da lâmpada lustrosa
e faço três pedidos
que não sei quais são.
Não quero estar aqui.
Morri faz tempo.
Me assassinaste hoje outra vez
e pagarás muito caro o preço
de cada um dos três bilhões
de lágrimas que chorei por ti.
Então escrevo madrugada adentro
e nada se resolve.
Verbalizo a dor.
Mas amanhã continuo
e a dor persiste
prego cravado
gilete no olho
           no canto da boca
estilete na pupila
no centro do coração
que escancarei para ouvir
- e é tão antigo -
o não que já conheço
e nunca entendo

Caio Fernando Abreu
poema publicado no livro Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Além do ponto

"Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na cara dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda; e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era."

Caio Fernando Abreu