domingo, 10 de janeiro de 2016

QUATRO BOLEROS MAROQUEROS

1
Com as últimas chuvas você se foi
e então acreditei
que para a casa mais aborrecida do subúrbio
não haveria primaveras
nem outonos nem invernos nem verões

Mas não

As estações se cumpriram
como estavam previstas em qualquer almanaque
E a senhoria e o carteiro
não tornaram a perguntar
por você.

2
Para esquecer você para não vê-la
contemplo a viagem das moscas pelo ar
Grande Estilo
Grande Velocidade
Grande Altura.

3
Para esquecer você pego o primeiro trem e vou para o campo
Impossível
É que sua ausência
tem algo de Flora de Fauna de Piquenique.

4
Não aumentaram meu salário por sua ausência
e contudo
o pote de Nescafé dura o dobro
o triplo as lâminas de barbear.


Antonio Cisneros
Com passos de fantasma,subirei aquelas escadas
viscosas. Chegarei até você pelos degraus
sombrios, percorrendo andares de pedras desconexas
e lisas, depois farei ranger a fechadura
de sua porta, e meio
adormecida você dirá é só o vento, é um sonho.
Penetrarei em seu sonho, leve,
insidioso, enfiando
sempre mais profundamente o ferrão do terror,
mostrarei para você as toupeiras
de olhos mortos que no centro escuro
do eu cavam os fétidos
e impreenchíveis buracos sem saída,
claro, em você também, profundamente,
enquanto descansa: e naquele mistério
frágil entrarei com toda doçura,
angústia e amargura de meu amor.
Sairei do silêncio
pelo duplo silêncio de avenidas
lunares, ou irei esperar,
em fundos falsos de mala, pálido
pela madrugada, as nuances amargas de um despertar
que não dissipa – sombra espessa –
os porquês que você requer
da vida, do vento,
de minha ausência tão estranha, ou é um sonho.

Dario Villa
trad. davi pessoa
via Facebook

Me ama, não me ama

“Íntimo” é o superlativo latino de “interior”. Um superlativo é uma forma que manifesta a potência máxima de algo, e “interior”, proveniente do latim 'interior', significa “mais interior de…”. O íntimo é aquilo que é mais interior, mais profundo, e, portanto, mais secreto, mais reservado, aquilo que me pertence mais profundamente, de tal modo que pode ser meu sem que eu mesmo o saiba, sem que possa realmente explicá-lo.
Quando digo “te amo”, digo aquilo que há de mais íntimo para mim e para o outro, porque o envolvo em sua intimidade. Por isso, o tema é muito embaraçante, difícil de ser abordado. É até mesmo necessário perguntar-se se é possível falar dele, e a resposta não é previsível. Estou certo de que vocês ficam incomodados com a ideia de ver uma conferência sobre o amor. Há muitas formas de incômodo: talvez vocês tenham se perguntado, “mas como é possível falar do amor?” […]
Amo-o pouco, amo-o muito: já se sabe que isto não é amor. Se alguém lhe pergunta “me amas?” e você responde “sim, te amo muito”, então já está provocando uma desilusão. Com isso quero dizer que “te amo” é absoluto. Assim, temos que dizer “te amo” e ponto final. Não podemos quantificar. […]
***
Jean-Luc Nancy, Je t’aime, beaucoup, passionément… Paris: Bayard, 2008, pp. 16-17/23, tradução Davi Pessoa. Conferência dada por Nancy em Montreuil, em 2 de fevereiro de 2008.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Acordei no meio da noite suando em bicas. Tive um sonho que eu tava numa sala de cirurgia, aí vinha uma mulher vestida de médica, raspava meu cabelo todinho e eu ficava careca. Depois vinha outro médico e me perguntava se as dores de cabeça eram constantes e eu dizia que sim, aí ela perguntava em que região da cabeça, e eu apontava com o dedo no lugar. Aí ele abria minha cabeça, com o bisturi, e saía pedacinhos do teu corpo, de dentro da minha cabeça, galega. Porra, era tudo tão real, que eu acordei em pânico. Tentei deitar novamente mas não consegui. Sinto amores e ódios por você. Sinto amores e ódios repentinos por você. Essa viagem tá me levando pra trás, pro dia que você me deixou. Fico o tempo todo pensando em voltar e não tenho nem mais pr'onde voltar. Insuportável. Inventei até que a gente tava junto, que a gente nunca tinha se separado, e comecei a escrever cartas, e responder cartas que você nunca mandou. Fiz essa viagem pra tentar esquecer o pé na bunda que você me deu e só foi pior. Só faço lembrar, sem parar. Esse lugar tá virando um pesadelo. Pela primeira vez tenho vontade de largar tudo. Largar a viagem, meu emprego, meu trabalho de geólogo, e me perder num labirinto sem saída. 

Trecho do filme Viajo porque preciso, volto porque te amo
dirigido por Marcelo Gomes e Karim Ainouz