quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Trecho de Manchas na pele, linguagem

Como todos os processos excessivamente contínuos, é preciso que nos lembremos do envelhecimento de um ponto de vista absolutamente exterior (em frases como "Não tenho idade para", "Naquela época" ou "Quando eu era menino") ou, ao contrário, de um interior imediato, muitas vezes corpóreo - na completa falta de ar após uma corrida, no rompimento estúpido de algum músculo. Mas é então, sob a sentença de um envelhecimento inevitável, que alguma coisa em mim parece querer, e poder, sobrevoar meu corpo, livrar-se dele - um misto de olhar para longe e respiração, um amálgama aflito de palavras, a melodia como porta ou túnel, o instante que cava minha pegada numa paisagem imensa. Mas esta alegria progressiva precisa de alimento constante e o próprio corpo, em sua casca, parece não resistir bem a ela, tornando-se inquieto, ofegante e, aos poucos, cansado e deprimido. Como um balão cujo gás vai escapando, a energia insana de nossa alegria física procura abrigo - nas imagens, nos braços de outra pessoa e, no limite, pois é a isto que sempre recorre, na linguagem. É ali que a tentamos prender, antes que o gás escape de uma vez e sejamos tão-somente os espectadores de nossa própria decrepitude, de nossa fusão indeterminada na matéria.

Chegamos então à beira do velho precipício - o entusiasmo das palavras vagas. É a este antigo último recurso que recorremos sempre - exclamações ou frases compulsivas que não conseguimos deixar de dizer. Talvez seja melhor tratar agora dessa estranha ferramenta, a linguagem, que me põe para fora do corpo - tentar apreendê-la, indeciso entre o mugido daquilo que vai sob a camisa e a fatuidade grandiosa de minhas frases. Sem conseguir escolher se a vida é benção ou matéria estúpida, examinar então, pacientemente, algumas pedras, organismos secos, passas, catarros, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas nuvens, cifras, letras de fumaça, rima feita de bosta, imensidão aprisionada numa cerca, besouros dentro do ouvido, fosforescência do organismo, batimento cardíaco comum a vários bichos, órgãos entranhados na matéria inerte, olhando a um só tempo do alto e de dentro para o enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou linguagem?

Como uma via intermediária, procuro entrar e permanecer no reino da pergunta - ou de uma explicação que não explica nunca. Assim, suspenso, murmuro um nome confuso a cada ser que chama minha atenção e toco com meu dedo a sua frágil solidez, fingindo que são homogêneos e contínuos. Posso, até mesmo, anotar em meu caderno características do que toco, como: "pinta-se de verde antes de reproduzir", "mostra extrema ansiedade antes do ocaso", ou "destila o breu dos carvalhos ao redor", mas não devo, em hipótese alguma, regredir à cadeia causal interminável, como um cachorro mordendo a cauda. Acabo por me conformar com uma vaga e humilde dispersão dos seres, fechados em seu desinteresse e incomunicabilidade de fundo, e como um modelo mal-ajustado ao modelo permaneço em meu torpor indagativo, deitado na relva, tentando unir pedaços de frases a pedaços de coisas vivas.

Nuno Ramos
no livro Ó

sábado, 1 de agosto de 2015

Conheça Miss Metrô

Conheça Miss Metrô
1957
Veja Miss Metrô
1957
rodando no trem da Times Square
pra lá e pra cá
às quatro da manhã

Conheça Miss Metrô
1957
Ela usa buchas de algodão do tamanho de moedas
socadas no nariz moreno achatado
transitando pra lá e pra cá
no trem da Times Square
às quatro da manhã
e circulando
entre os anéis de ferro do paraíso
com braços dourados retalhados
charuto negro em mão morena

Você pode encontrar Miss Metrô
Você pode ver Miss Metrô
1957
trajando trajes tristes
transando trastes transidos
circulando em transe pelo trânsito
com braços morenos fatigados
bituca negra em mão morena

E os carros de ferro
indo e vindo eternamente
rumo à morte e à escuridão
oh Ubangi perdido

Cambaleando entre
as "ogivas sucessivas" do Inferno
em direção à definitiva
escada de incêndio de Danta

Lawrence Ferlinghetti,
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça

Rua Longa

A rua longa
que é a rua do mundo
passa em torno do mundo
cheia de todas as pessoas do mundo
pra não dizer todas as vozes
de todas as pessoas
que já existiram
Quem ama e quem chora
dorminhocos e virgens
homens de venda de spaghetti e homens-sanduíche
oradores e leitores
desossados banqueiros
donas-de-casa criteriosas
cobertas de esnobices de náilon
desertos de publicitários
manadas de secundaristas fogosas
multidões de colegiais
falando pelos cotovelos do mundo
e andando por aí sem parar
se pendurando na primeira janela
para ver o que passa
no mundo lá fora
onde tudo acontece
mais cedo ou mais tarde
se de fato acontece mesmo
E a rua longa
que é a rua mais longa
de todo o mundo
mas não é tão longa
como parece
passa por
todas as cidades e todas as cenas
cada alameda abaixo
cada boulevard para cima
cruza cada cruzamento
com sinais vermelhos e sinais verdes
passa por cidades ao sol
continentes na chuva
Hong Kongs famintas
incultiváveis Tuscaloosas
Oaklands da alma
Dublins da imaginação
E a rua longa
rola na sua ronda
como um enorme trem que chia
ofegando em volta do mundo
com a bagunça dos passageiros
os bebês e as cestas de piquenique
os cachorros e os gatos
e todos se perguntando
quem é que está
na cabine da frente
guiando o trem
se é que lá
tem mesmo alguém
o trem que corre ao redor do mundo
como um mundo que vai ficando redondo
todos ali se perguntando
que será que há
se há qualquer coisa
enquanto alguns se pendurando
espicham o olhar para a frente
tentando dar uma manjada
no maquinista na cabine
que só tem um olho
tentando ver o maquinista
divisar sua face
encontrar seu olho
quando eles passam numa curva
e jamais conseguem
embora de vez em quando pareça
que eles até já estão
para conseguir
E assim a rua vai rolando
vai o trem rebolando
estendendo nas janelas
suas lá dele as demais janelas de todos
os edifícios de
todas as ruas do mundo
deslizando também
na luz do mundo
na noite do mundo
com sinais nas travessias
fachos que estão perdidos mas focam
multidões em carnavais
circos na boca da noite
puteiros e parlamentos
fontes que o pensamento abandona
portas de porão e portas não achadas
figuras indecisas na lâmpada
ídolos que dançam pálidos
na ida continuada do mundo
Mas chegamos agora
à parte mais vazia da rua
à parte da rua
que passa em volta
da parte mais vazia do mundo
E não é aqui
que você vai
mudar de trem
Não é neste lugar
que você faz
alguma coisa
Esta é aquela parte do mundo
onde nada está fazendo
onde ninguém está fazendo
nada
onde em nenhum lugar há
alguém que não seja
apenas você
nem mesmo um espelho
que te faça em dois
nem uma alma
a não ser a sua
talvez
e mesmo assim
não aí
talvez
ou então não sua
talvez
porque você está como se diz
morto
você chegou à sua estação

Queira descer

Lawrence Ferlinghetti, 
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça

Cristo Abandonou

Cristo abandonou
sua árvore desnuda
este ano
e se mandou para onde
não há árvores de Natal desenraizadas
e com penduricalhos pendurados pelos galhos

Cristo abandonou
sua árvore desnuda
este ano
e se mandou para onde
não há árvores de Natal luminescentes
ou árvores de Natal de estanho folheado
ou árvores de Natal de estranhos floreados
ou árvores de Natal rosa plástico
ou árvores de Natal douradas
ou árvores de Natal negras
ou árvores de Natal azul esmalte
com velas elétricas
e trenzinhos elétricos rodando em volta
e parentes elegantes se empanturrando
de sarrabulho.

Cristo abandonou
sua árvore desnuda
este ano
e se mandou para onde
não há intrépidos vendedores de Bíblias
cobrindo a nação
em cadillacs obesos
nem presépios das lojas Sears
completos com bebê de plástico na manjedoura e tudo
enviados pelo correio
e bebê vem pela entrega rápida
nem Sábios televisivos
entoando cânticos de louvor ao uísque Lord Calvert

Cristo abandonou
sua árvore desnuda
este ano
e se mandou para onde
nenhum gordo estranho apertando as mãos
metido numa roupa vermelha de flanela
com uma barba branca falsa
fica circulando
como se fosse uma espécie de santo do Pólo Norte
cruzando o deserto até Belém
na Pennsylvania
num trenó
puxado por renas tilintantes de Adirondack
com nomes alemães
transportando sacos cheios de presentes
da Saks da Quinta Avenida
para que todos celebrem Cristo criança

Cristo abandonou
sua árvore desnuda
este ano
e se mandou para onde
Bing Crosby nenhum recita
canções de Feliz Natal
nem anjos da Radio City
patinam desasados
por um gélido País das Maravilhas
em direção ao Paraíso do jinglebell
diariamente às 8:30
com matinês da Missa do Galo

Cristo abandonou
sua árvore desnuda
este ano
e furtivamente fugiu rumo
ao útero anônimo de Maria outra vez
onde na escuridão da noite
das almas anônimas de nós todos
Ele aguarda novamente
uma inimaginável
e impossível
Reconcepção Imaculada
na mais doida de todas
as Segundas Vindas

Lawrence Ferlinghett,
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça

Cachorro

O cachorro vai livre pela rua
e vê a realidade
e as coisas que ele vê
são maiores que ele
e as coisas que ele vê
são a realidade dele
Bêbados caindo nas portas
Luas subindo em árvores
O cachorro vai livre pela rua
e as coisas que ele vê
são menos que ele
buracos de formiga
peixe em folha de Jornal
vitrines do Chinatown com galinhas
de cabeças pousadas um quarteirão à frente
O cachorro vai livre pela rua
e as coisas que ele cheira
cheiram um pouco como ele
O cachorro vai livre pela rua
passa por poças e bebês
charutos e gatos
lojas de apostas e policiais
Ele não tem raiva
dos policiais, apenas não lhes dá importâneia
passa por eles
e os bois inteiros pendurados mortos
em frente do Mercado da Carne de San Francisco
Preferia comer uma vitela macia
a ter de engolir um tira duro
mas bem que qualquer um serviria
E ele avança pela Fábrica de Ravioli Romeo
passa pela Torre de Coit
e a estátua de Doyle
Ele tem medo da Torre de Coit
mas não tem medo do Congressista Doyle
embora o que ouve seja desanimador
muito deprimente
e muito absurdo
para um jovem cachorro triste
como ele um cachorro sério
Ele que tem seu mundo livre
onde ficar comendo as próprias
pulgas não será dominado
O Congressista Doyle se resume
para ele a mais
um hidrante na rua
O cachorro vai livre pela rua
tem sua vida de cão para viver
pensar acerca
refletir sobre
tocando testando provando tudo
investigando tudo
sem um lucro por quebra de palavra
um real realista
com um conto real para contar
e um rabo real com o qual fazê-lo
uma vida real
                      latindo
                                 cachorro democrático
envolvido na real
                            livre iniciativa
com alguma coisa a dizer
                                      sobre ontologia
alguma coisa a dizer
                                  sobre a realidade
                                                             e como ouvir
                                                                                  e ver
cabeça atenta empertigada
                                          a cada esquina
como se fossem fotografá-lo
                                            na mesma hora
                                                                    para os Discos RCA
                            ouvindo
                                        A Voz do Dono
                       e olhando
                                       como um ponto de interrogação vivo
                                                                                                no
                                                                                   grande gramofone
                                                                               da existência intrigante
                     com seu prodigioso corno oco
                               que parece
                        sempre pronto a cuspir uma resposta
                                                                         alguma Victoriosa resposta
                                                                                     para tudo

Lawrence Ferlinghetti,
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça

Obbligato do Bicho Louco

Vamos
Venha
Vamos
tirar tudo do bolso
e desaparecer.
Faltar a todos os compromissos
e só voltar de barba grande
anos depois
velhos papéis de enrolar cigarro
enfiados na calça
e folhas no cabelo.
Vamos parar
de nos preocupar
com os pagamentos.
Eles que venham
e levem tudo
seja lá o que for
pelo que pagamos.
E que até levem a nós.

Vamos levantar para ir
lá onde as piranhas adoram
No Alto do Morro
onde elas seguram tremores
de terra atrás de pardieiros perdidos
entre canos de gás restos de comida.
Tomemos os Pardieiros Urbanos
pelo que eles são realmente.
A pátria os chora.
Vamos desaparecer imergindo
em cemitérios de automóveis
e reaparecer anos depois
catando trapos e jornais
secando a cueca no
calor do lixo queimado
com o rabo remendado.
Não se dê ao trabalho
de dar adeus
a uma só pessoa.
Nossa ausência não desolará sua esposa.
Vamos com todo
nosso cheiro animal
por onde os bancos estão cheios
de estátuas dispensadas do parque
à escura noite interior
da zona florida
olhos aguados
pela contemplação
das garrafas vazias de moscatel.
Vamos declamar nas esquinas
lendo bíblias bichadas
Seguir piranhas no porto
Falar canções de selvageria
Jogar pedras
Dizer qualquer coisa
Piscar pro sol se coçar
tropeçar para cair no silêncio
Papear nas portas
conhecer putas de terceira mão
depois que todos já se fartaram
andar cambaleando abismado no pôr-do-sol sobre o rio
dormir em cabines telefônicas
vomitar num balcão de loja de prego
batalhando por um casaco de inverno.

Vamos levantar e descer
sob a cidade
onde os cinzeiros de pé saem rolando
e ressurgem em roupas pútridas
como os reis subterrâneos sem coroa
dos mictórios do metrô.
Vamos dar comida aos pombos
da Prefeitura
exortando-os a que cumpram seu dever
no gabinete do Prefeito.
Se apresse que está na hora
o fim se aproxima
Faíscas afluem
Há desastres no sol
Os cães estão soltos
E uma irmã na rua
usa o sutiã para trás.
Vamos logo ingressar
na escura noite interior
da zona calma da alma
e encontrar nossos seres renovados
onde os metrôs defeituosos esperam
sob o Rio.
Cruze para
o pleno maravilhar-se.
A Barca do Sul não vai sair para sempre.
Já estão aliás tirando as barcas
da Baía mas ainda não é tarde demais
para ir se perder em Oakland.
Washington ainda
não caiu do cavalo.
Ainda há tempo para incentivá-lo
e então se mandar
largando para trás o formulário do imposto
de renda o relógio à prova d'água
e indo às tontas procurar por pivetes
sob a Ponte de Brooklyn
estátuas de calças largas no vento
nossos gritos de guerra e a voz de lixo
avisando pastosa
que vende coisinha!
Vamos parar vamos ir
para o interior real do país
onde o reino do penhor
pende para a pura anarquia.
O fim está aqui
mas o golfe continua lá em Burning Tree.
Está chovendo desabando água
e o Velho continua roncando.
Vem vindo aí outro dilúvio
mas não do tipo que você pensa.
Ainda há tempo para pular de cabeça
e pensar à beça.
Meu desejo é descer na sociedade.
Quero todo ser livre.
Simples rele quadriga amiga.
Não esperemos cadillacs
que nos carreguem triunfantes
pelo interior
acenando aos nativos
como senadores romanos nas províncias
com lauréis de poeta
postos nas suas testas ilustres.
Não esperemos a matéria
na 1ª página do
The New York Times Book Review
imagens de insano sucesso
mandando lá do retrato um sorriso.
Quando eles derem tua foto
na revista Life
você de resto já terá se tornado um negativo
uma cópia de acabamento brilhante.
Já terão vindo e te pegado
para ser famoso
mas você não terá ficado livre.

Tchau que eu me vou.
Vou vender tudo
e dar o resto
para as Indústrias da Boa Vontade.
Lá deve estar fazendo escuro
com a Banda do Exército da Salvação
e a mente sua própria iluminação.
Tchau que estou saindo de cena.
Fim de papo pra mim.
O sistema está todo contaminado.
Roma nunca foi como isso.
Estou cansado de esperar por Godot.
Estou indo para onde as tartarugas saem ganhando
estou indo lá
onde os pilantras morrem de vomitar.
Nada das tristes esplanadas
do mundo oficial.
Coisinha à venda!
E a pátria lamenta.
Vamos pois nós dois
largando as gravatas penduradas num poste.
Assumindo a barba
da anarquia andarilha
com uma cara de Walt Whitman
e uma bomba feita em casa no bolso.
Quero descer na escala social.
A alta sociedade é a sociedade baixa.
Na ascenção social
eu subo para baixo
e a descida é dura.
O Ideal da Alta Classe Média
é para os pássaros
mas nem os pássaros precisam dele
pois têm sua ordem de bicar
baseada no canto.
E os pombos se contentam no chão.
Vamos levantar para ir
para a Ilha de Liberfri.
Deixa pra lá os traficantes de paz.
Corre que é hora.
Vamos levantar e avançar
até o fundo
da Cafeteria Foster.
Tchau Emily Post.
Tchau
Lowell Tomas.
Tchau Brodway.
Tchau Herald Square.
Desliguem tudo.
Confundam todo o sistema.
Cancelem nossas folgas.
Percam a guerra
sem matar ninguém.
Que os cavalos urrem
e as mulheres corram
para onde se empoar sem rubor.
O fim acaba de começar.
Eu pretendo anunciá-lo.
Corra não ande
para a saída mais próxima.
O terremoto real já está aí.
Posso sentir o edifício tremendo.
Sou o tipo do cara refinado.
Não suporto isso.
Vou passar
por pilhas de avaliações
de agentes alfandegários que se dizem
críticos literários.
Meu instrumento está com pó.
Meu corpo ficou tempo demais
pendurado em suspensores estranhos.
Me arranje um lenço indiano
para eu usar como colhoneira.
Relaxemos fiquemos fora
do ponto no qual carros colapsam
e o mundo novamente começa.
Mas corre que já é tempo.
Já é mais do que tempo
e ainda tem a fricção.
Viramos garotinhos bonzinhos pensando em bloco.
Passemos agora
para a trilha da eternidade.
Nalgum lugar os campos estão cheios
de cotovias.
Nalgum lugar a terra está dançando.
A pátria chora.
Estou cantando.

Vamos levantar para ir
para a Ilha de Liberfri
e ali viver a veravida
azul e simples
de assombro e sabedoria
onde todas as coisas
crescem cantando
cada qual a seu modo
no sol amarelo
papoulas no trajeto das vacas
anjos pensativos na bosta.
Tenho de me erguer e partir
para a Ilha de Liberfri
que fica por detrás das palavras
mancas e dos bosques da Arcádia.

Lawrence Ferlinghetti,
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça

Estou esperando

Estou esperando que meu caso seja lembrado
e estou esperando
um renascimento do maravilhoso
e estou esperando que alguém
descubra de fato a América
e se lamente
e estou esperando
a descoberta
de uma nova fronteira simbólica no Oeste
e estou esperando
que a Água Americana
estenda realmente suas asas
e se aprume e alçe vôo
e estou esperando
que a Era da Ansiedade
caia dura e morta
e estou esperando
pela guerra que virá
preparando o mundo
para a anarquia
e estou esperando
pelo definhamento definitivo
de todos os governos
e estou perpetuamente à espera
de um renascimento do maravilhoso

Estou esperando a Segunda Vinda
e estou esperando
um renascimento religioso
que se alastre pelo estado do Arizona
e estou esperando
que as Vinhas da Ira sejam estocadas
e estou esperando
que elas comprovem
que Deus realmente é Americano
e estou seriamente esperando
que Billy Graham e Elvis Presley
troquem seus papéis seriamente
e estou esperando
que Deus apareça na televisão
empoleirado nos altares da igreja
caso eles consigam
sintonizar
o canal correto
e estou esperando
que a Última Ceia seja requentada
e servida com um novo e exótico aperitivo
e estou perpetuamente à espera
de um renascimento do maravilhoso

Estou esperando que meu número seja chamado
e estou esperando
pelo final vivo
e estou esperando
que meu velho retorne para casa
com os bolsos cheios
de dólares de prata radiante
e estou esperando
que os testes atômicos terminem
e estou esperando alegremente
que as coisas piorem de verdade
antes de melhorarem definitivamente
e estou esperando
que o Exército da Salvação tome conta da situação
e estou esperando
que a multidão humana
se despenque de um precipício em algum lugar
agarrada a seu guarda-chuva atômico
estou esperando
que Ike atue
e estou esperando
que os humildes sejam abençoados
e herdem a terra
sem pagar imposto
e estou esperando
que as florestas e os animais
reclamem a terra como sua
e estou esperando
que se articule alguma forma
de acabar com todos os nacionalismos
sem matar ninguém
e estou esperando
que os pintarroxos e os planetas caiam como chuva
e estou à espera que os amantes e as carpideiras
deitem-se juntos outra vez
num renascimento do maravilhoso

Estou esperando que a Grande Barreira seja cruzada
e estou ansiosamente à espera
que o segredo da vida eterna seja descoberto
por um obscuro clínico geral
e me salve para sempre da morte certa
e estou esperando
que a vida comece
e estou esperando
que as tempestades da vida
cessem
e estou esperando
soltar velas e zarpar para a felicidade
e estou esperando
um Mayflower reconstruído
que chegue à América
com os direitos de sua epopéia
para quadrinhos e TV
já vendidos antecipadamente para os nativos
e estou esperando
que a melodia perdida ressoe novamente
no Continente Perdido
num novo renascimento do maravilhoso

Estou esperando o dia
em que tudo se esclarecerá
e estou esperando
que o Old Man River
deixe de perambular
pelos arredores do Country Club
e estou esperando
que o extremo Sul
pare de se reconstruir interminavelmente
à sua própria imagem
e estou esperando
que a mulher rendeira
me ensine a fazer renda
e me leve de volta pra Velha Virgínia
e estou esperando
que a Velha Virgínia descubra
porque os negros nascem
e estou esperando
que Deus observe
da Montanha da Observação
e compreenda que a Ode aos Confederados Mortos
na verdade é uma farsa
e estou esperando a punição
pelo que a América fez
a Tom Sawyer
e estou perpetuamente à espera
de um renascimento maravilhoso

Estou esperando que Tom Swift cresça
e estou esperando
que o Garoto Americano
arranque as roupas da Beleza
e se aconchegue à ela
e estou esperando
que Alice no País das Maravilhas
me retransmita
por completo seu sonho inocente
e estou esperando
que o Cavaleiro Rolando atinja
a última e mais sombria torre
e estou esperando
que Afrodite
germine armas vivas
na conferência final do desarmamento
num novo renascimento do maravilhoso

Estou esperando
sentir algumas insinuações
da imortalidade
ao relembrar minha tenra infância
e estou esperando
pelo retorno das manhãs repletas de esperança
pelo retorno dos verdes campos singelos da adolescência
e estou esperando
que calafrios de arte espontânea
percorram minha máquina de escrever
e estou esperando escrever
o poema impecável e definitivo
e estou esperando
pelo longo louco êxtase desleixado
e estou perpetuamente à espera
que os esquivos amantes da Ânfora Grega
consigam finalmente agarrar-se
num abraço profundo
e estou esperando
perpetuamente e para todo o sempre
um renascimento do maravilhoso

Lawrence Ferlinghetti,
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça

Autobiografia

Estou levando uma vidinha mansa
no bar do Mike o dia inteiro
sacando os campeões
de bilhar do salão do Dante
e os viciados em fliperama.
Estou levando uma vidinha mansa
na zona leste da Brodway.
Sou americano.
Fui um garoto tipicamente americano.
Li a revista do Garoto Americano
e virei escoteiro
nos subúrbios.
Pensei que era Tom Sawyer
pescando pitu no rio do Bronx
e me imaginando no Mississipi.
Tive uma luva de baseball
e uma bicicleta American Flyer.
Distribuía o Woman's Home Companion
às cinco da tarde
ou o Herald Tribune
às cinco da manhã.
Ainda posso ouvir o baque do jornal caindo
em alpendres esquecidos.
Tive uma infância infeliz.
Vi Lindberg aterrar.
Olhei para minha terra natal
E não vi anjo nenhum.
Fui pego roubando lápis
num bazar barato
no mesmo mês que fui promovido a Escoteiro-Chefe.
Derrubei árvores para o Departamento de Agricultura
e sentei sobre elas.
Desembarquei na Normandia
num barco a remo que virou.
Vi exércitos refinados
na praia em Dover
Vi pilotos egípcios em nuvens púrpura
lojistas enrolando seus toldos
ao meio-dia
salada de batatas e dente-de-leão
em piqueniques anarquistas.
Estou lendo "Lorna Doone"
e uma biografia de John Most
terror dos industrialistas
com uma bomba sempre na escrivaninha.
Vi lixeiras desfilarem
na parada do dia de Colombo
atrás dos corneteiros
barulhentos e desinibidos.
Não visito a clausura dos Mosteiros
faz tempo
nem tampouco as Tulhas
mas continuo pensando
em ir.
Vi o desfile dos lixeiros
enquanto nevava
Comi muito cachorro-quente frio nas feiras.
Ouvi o Discurso do Gettysburg
e o Discurso do Ginsberg.
Gosto daqui
e nem penso em voltar
para donde vim.
Também eu viajei em vagões de carga vagões de carga vagões de carga.
Viajei entre homens desconhecidos.
Estive na Ásia
com Noé na Arca.
Estava na Índia
quando Roma foi construída.
Visitei a Manjedoura
com o Burro.
Vi o Eterno Distribuidor
do White Hill
Ao sul de San Francisco
e a Mulher-que-Ri no Loona Park
do lado de fora da Tenda das Gargalhadas
sob a tormenta
mas sempre rindo
tenho ouvido o som dos folguedos
à noite.
Tenho perambulado solitário
como as multidões.
Estou levando uma vidinha mansa
nas redondezas do bar do Mike todos os dias
vendo o mundo cruzar
em seus curiosos sapatos
Certeza vez iniciei
uma caminhada em torno do mundo
mas desisti no Brooklyn
Aquela ponte foi demais para mim.
Já tentei o silêncio
o exílio e a astúcia.
Voei muito próximo ao sol
e minhas asas de cera se derreteram.
Estou procurando pelo meu Velho
que jamais conheci.
Estou procurando pelo Líder Perdido
com quem voei.
Os jovens deveriam ser exploradores.
O lar é o ponto de partida.
Mas Mamãe nunca me preveniu
que haveria cenas como essas.
Útero ulterior
estou farto dele
Tenho viajado.
Estive numa cidade fantasma.
Perambulei entre multidões múltimas.
Ouvi Kid Ory choramingar.
Ouvi o sermão de um trombone.
Ouvi Debussy
filtrado por um lençol.
Dormi numa centena de ilhas
onde os livros eram árvores.
Ouvi pássaros
ressoando como sinos.
Usei velhas calças de flanela
e caminhei pela praia do inferno.
Busquei abrigo numa centena de cidades
onde as árvores eram livres.
Que metrôs que táxis que cafés!
Que mulheres com cegos seios
membros perdidos entre arranha-céus!
Tenho visto estátuas de heróis
nos entroncamentos.
Danton lacrimejando na entrada do metrô
Colombo em Barcelona
apontando para Oeste, pros lados de Ramblas
em direção ao American Express
Lincoln em seu trono de rocha
E um enorme Rosto de Pedra
no Dakota do Norte.
estou sabendo que Colombo
não inventou a América.
Ouvi uma centena de Ezra Pounds amestrados
Acho que todos eles deveriam ser soltos.
Já se passou muito tempo desde que fui pastor
Agora levo uma vida mansa
no bar do Mike diariamente
lendo os Classificados.
Li as Seleções do Reader's Digest
de cabo a rabo
e notei a perfeita identificação
entre os Estados Unidos e a Terra prometida
já que em todas as moedas está impresso
CONFIAMOS EM DEUS
mas nas notas de dólar não é inscrição alguma
porque são deuses elas próprias.
Leio diariamente a seção Precisa-se
em busca de uma pedra uma folha
uma porta esquecida.
Ouço a América cantar
nas Páginas Amarelas.
Quem diria
a alma também tem crises.
Leio os jornais todos os dias
e noto os equívocos da humanidade
e o excesso lamentável de artigos impressos.
Vejo que o lago de Walden foi drenado
para que se construísse um parque de diversões.
Vejo que estão fazendo Melville
comer sua baleia.
Vejo também que uma nova guerra vem aí
mas não serei eu quem vai lutar nela.
Li os grafites
nas paredes das privadas.
Ajudei Kilroy a escrevê-los.
Marchei pela Quinta Avenida acima
tocando clarim num severo pelotão
mas me mandei correndo pra Casbah
procurando por meu cão.
Noto alguma semelhança
entre os cães e eu.
Cães são os verdadeiros observadores
percorrendo os quatro cantos do mundo
e a região de Molloy.
Cruzei becos
estreitos demais para Galaxies.
Vi centenas de carroças de leite sem cavalos
num terreno baldio em Astória.
Ben Shahn jamais as pintou
mas elas estão lá retorcidas no Astória
Escutei o Obbligato do Bicho louco
Percorri super-auto-estradas
e acreditei na promessa dos cartazes
Cruzei as planícies de Jersey
e vi as cidades da Planície
E chafurdei nos ermos de Westchester
entre bandos de nativos nômades
em seus carroções.
Eu os vi.
Eu sou o homem.
Eu estive lá.
Eu sofri
um pouco.
Eu sou americano.
Tenho passaporte.
Não sofri em público.
Sou jovem demais para morrer.
Sou um homem que se fez a si próprio.
Sou um selfmadman.
E tenhpo planos para o futuro.
Estou na fila
à espera dum emprego de primeira.
Talvez me mude
pra Detroit.
Por enquanto vou me virando
como vendedor de gravatas.
Sou um Zé Ninguém.
Mas no fundo um bom sujeito
Sou um livro aberto
pro meu patrão.
Sou um mistério impenetrável
pros meus amigos mais íntimos.
Vou levando essa vida mansa
no bar do Mike o dia inteiro
contemplando o umbigo.
Sou uma parte
da longa loucura do corpo.
Tenho vagueado por bosques noturnos.
Tenho me amparado em umbrais embriagados.
Tenho escrito histórias frenéticas
sem pontuação.
Eu sou o homem.
Eu estive lá.
Eu sofri
um pouco.
Sentei em cadeiras de cansaço.
Sou uma lágrima do sol.
Sou a colina
pela qual os poetas trepam.
Inventei o alfabeto
depois de observar o vôo das garças
que faziam letras com as pernas.
Sou um lago na planície.
Uma palavra
numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Uma blitz no inarticulado.
Sonhei
que todos os meus dentes caíram
mas a língua sobreviveu
para contar a história.
Porque sou um silêncio
poético.
Sou um banco de canções.
Sou o pianista
de um cassino abandonado
numa colina à beira-mar
em meio ao nevoeiro
mas sempre a tocar.
Vejo certa semelhança
entre a Mulher Que Ri
e eu.
Ouvi o som do verão
sob a chuva.
Vi garotas em plataformas de madeira
com estranhas sensações.
Compreendo suas hesitações.
Sou um colhedor de frutas.
Já percebi como os beijos
provocam euforia.
Corro o risco de ficar encantado.
Vi a Virgem
sob uma macieira em Chartres
E Santa Joana ardendo
em Bella Union.
Vi girafas no jangal
seus pescoços como o amor
entrelaçados nas circunstâncias férreas
deste mundo.
Vi Vênus Afrodite
sem braços em seu corredor ventoso.
Ouvi o lamento da sirene
na Quinta Avenida.
Vi a Deusa Branca vailando
na Rue des Beaux Arts
no Dia da Independência
e a Bela Dama Sem Compaixão
com um dedo no nariz em Chumley's.
Ela não falava inglês.
Tinha o cabelo loiro
e a voz rouca
e nenhum pássaro cantarolava.
Vou levando uma vida mansa
no bar do Mike todos os dias
sacando os jogadores de bilhar
lambuzando a cena com minestroni
e devorando macarrão
e li em algum lugar
o Significado da Existência
mas esqueci
exatamente onde.
Mas eu sou o homem
E eu estarei lá.
E talvez possa despertar os lábios
daqueles que
ainda dormem.
E talvez transforme meus papéis
em folhas de relva.
E talvez ainda escreva meu
anônimo epitáfio
instruindo aos cavaleiros
que passem.

Lawrence Ferlinghetti,
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça