sábado, 1 de agosto de 2015

Obbligato do Bicho Louco

Vamos
Venha
Vamos
tirar tudo do bolso
e desaparecer.
Faltar a todos os compromissos
e só voltar de barba grande
anos depois
velhos papéis de enrolar cigarro
enfiados na calça
e folhas no cabelo.
Vamos parar
de nos preocupar
com os pagamentos.
Eles que venham
e levem tudo
seja lá o que for
pelo que pagamos.
E que até levem a nós.

Vamos levantar para ir
lá onde as piranhas adoram
No Alto do Morro
onde elas seguram tremores
de terra atrás de pardieiros perdidos
entre canos de gás restos de comida.
Tomemos os Pardieiros Urbanos
pelo que eles são realmente.
A pátria os chora.
Vamos desaparecer imergindo
em cemitérios de automóveis
e reaparecer anos depois
catando trapos e jornais
secando a cueca no
calor do lixo queimado
com o rabo remendado.
Não se dê ao trabalho
de dar adeus
a uma só pessoa.
Nossa ausência não desolará sua esposa.
Vamos com todo
nosso cheiro animal
por onde os bancos estão cheios
de estátuas dispensadas do parque
à escura noite interior
da zona florida
olhos aguados
pela contemplação
das garrafas vazias de moscatel.
Vamos declamar nas esquinas
lendo bíblias bichadas
Seguir piranhas no porto
Falar canções de selvageria
Jogar pedras
Dizer qualquer coisa
Piscar pro sol se coçar
tropeçar para cair no silêncio
Papear nas portas
conhecer putas de terceira mão
depois que todos já se fartaram
andar cambaleando abismado no pôr-do-sol sobre o rio
dormir em cabines telefônicas
vomitar num balcão de loja de prego
batalhando por um casaco de inverno.

Vamos levantar e descer
sob a cidade
onde os cinzeiros de pé saem rolando
e ressurgem em roupas pútridas
como os reis subterrâneos sem coroa
dos mictórios do metrô.
Vamos dar comida aos pombos
da Prefeitura
exortando-os a que cumpram seu dever
no gabinete do Prefeito.
Se apresse que está na hora
o fim se aproxima
Faíscas afluem
Há desastres no sol
Os cães estão soltos
E uma irmã na rua
usa o sutiã para trás.
Vamos logo ingressar
na escura noite interior
da zona calma da alma
e encontrar nossos seres renovados
onde os metrôs defeituosos esperam
sob o Rio.
Cruze para
o pleno maravilhar-se.
A Barca do Sul não vai sair para sempre.
Já estão aliás tirando as barcas
da Baía mas ainda não é tarde demais
para ir se perder em Oakland.
Washington ainda
não caiu do cavalo.
Ainda há tempo para incentivá-lo
e então se mandar
largando para trás o formulário do imposto
de renda o relógio à prova d'água
e indo às tontas procurar por pivetes
sob a Ponte de Brooklyn
estátuas de calças largas no vento
nossos gritos de guerra e a voz de lixo
avisando pastosa
que vende coisinha!
Vamos parar vamos ir
para o interior real do país
onde o reino do penhor
pende para a pura anarquia.
O fim está aqui
mas o golfe continua lá em Burning Tree.
Está chovendo desabando água
e o Velho continua roncando.
Vem vindo aí outro dilúvio
mas não do tipo que você pensa.
Ainda há tempo para pular de cabeça
e pensar à beça.
Meu desejo é descer na sociedade.
Quero todo ser livre.
Simples rele quadriga amiga.
Não esperemos cadillacs
que nos carreguem triunfantes
pelo interior
acenando aos nativos
como senadores romanos nas províncias
com lauréis de poeta
postos nas suas testas ilustres.
Não esperemos a matéria
na 1ª página do
The New York Times Book Review
imagens de insano sucesso
mandando lá do retrato um sorriso.
Quando eles derem tua foto
na revista Life
você de resto já terá se tornado um negativo
uma cópia de acabamento brilhante.
Já terão vindo e te pegado
para ser famoso
mas você não terá ficado livre.

Tchau que eu me vou.
Vou vender tudo
e dar o resto
para as Indústrias da Boa Vontade.
Lá deve estar fazendo escuro
com a Banda do Exército da Salvação
e a mente sua própria iluminação.
Tchau que estou saindo de cena.
Fim de papo pra mim.
O sistema está todo contaminado.
Roma nunca foi como isso.
Estou cansado de esperar por Godot.
Estou indo para onde as tartarugas saem ganhando
estou indo lá
onde os pilantras morrem de vomitar.
Nada das tristes esplanadas
do mundo oficial.
Coisinha à venda!
E a pátria lamenta.
Vamos pois nós dois
largando as gravatas penduradas num poste.
Assumindo a barba
da anarquia andarilha
com uma cara de Walt Whitman
e uma bomba feita em casa no bolso.
Quero descer na escala social.
A alta sociedade é a sociedade baixa.
Na ascenção social
eu subo para baixo
e a descida é dura.
O Ideal da Alta Classe Média
é para os pássaros
mas nem os pássaros precisam dele
pois têm sua ordem de bicar
baseada no canto.
E os pombos se contentam no chão.
Vamos levantar para ir
para a Ilha de Liberfri.
Deixa pra lá os traficantes de paz.
Corre que é hora.
Vamos levantar e avançar
até o fundo
da Cafeteria Foster.
Tchau Emily Post.
Tchau
Lowell Tomas.
Tchau Brodway.
Tchau Herald Square.
Desliguem tudo.
Confundam todo o sistema.
Cancelem nossas folgas.
Percam a guerra
sem matar ninguém.
Que os cavalos urrem
e as mulheres corram
para onde se empoar sem rubor.
O fim acaba de começar.
Eu pretendo anunciá-lo.
Corra não ande
para a saída mais próxima.
O terremoto real já está aí.
Posso sentir o edifício tremendo.
Sou o tipo do cara refinado.
Não suporto isso.
Vou passar
por pilhas de avaliações
de agentes alfandegários que se dizem
críticos literários.
Meu instrumento está com pó.
Meu corpo ficou tempo demais
pendurado em suspensores estranhos.
Me arranje um lenço indiano
para eu usar como colhoneira.
Relaxemos fiquemos fora
do ponto no qual carros colapsam
e o mundo novamente começa.
Mas corre que já é tempo.
Já é mais do que tempo
e ainda tem a fricção.
Viramos garotinhos bonzinhos pensando em bloco.
Passemos agora
para a trilha da eternidade.
Nalgum lugar os campos estão cheios
de cotovias.
Nalgum lugar a terra está dançando.
A pátria chora.
Estou cantando.

Vamos levantar para ir
para a Ilha de Liberfri
e ali viver a veravida
azul e simples
de assombro e sabedoria
onde todas as coisas
crescem cantando
cada qual a seu modo
no sol amarelo
papoulas no trajeto das vacas
anjos pensativos na bosta.
Tenho de me erguer e partir
para a Ilha de Liberfri
que fica por detrás das palavras
mancas e dos bosques da Arcádia.

Lawrence Ferlinghetti,
Mensagens Orais, no livro Um parque de diversões da cabeça

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