Como todos os processos excessivamente contínuos, é preciso que nos lembremos do envelhecimento de um ponto de vista absolutamente exterior (em frases como "Não tenho idade para", "Naquela época" ou "Quando eu era menino") ou, ao contrário, de um interior imediato, muitas vezes corpóreo - na completa falta de ar após uma corrida, no rompimento estúpido de algum músculo. Mas é então, sob a sentença de um envelhecimento inevitável, que alguma coisa em mim parece querer, e poder, sobrevoar meu corpo, livrar-se dele - um misto de olhar para longe e respiração, um amálgama aflito de palavras, a melodia como porta ou túnel, o instante que cava minha pegada numa paisagem imensa. Mas esta alegria progressiva precisa de alimento constante e o próprio corpo, em sua casca, parece não resistir bem a ela, tornando-se inquieto, ofegante e, aos poucos, cansado e deprimido. Como um balão cujo gás vai escapando, a energia insana de nossa alegria física procura abrigo - nas imagens, nos braços de outra pessoa e, no limite, pois é a isto que sempre recorre, na linguagem. É ali que a tentamos prender, antes que o gás escape de uma vez e sejamos tão-somente os espectadores de nossa própria decrepitude, de nossa fusão indeterminada na matéria.
Chegamos então à beira do velho precipício - o entusiasmo das palavras vagas. É a este antigo último recurso que recorremos sempre - exclamações ou frases compulsivas que não conseguimos deixar de dizer. Talvez seja melhor tratar agora dessa estranha ferramenta, a linguagem, que me põe para fora do corpo - tentar apreendê-la, indeciso entre o mugido daquilo que vai sob a camisa e a fatuidade grandiosa de minhas frases. Sem conseguir escolher se a vida é benção ou matéria estúpida, examinar então, pacientemente, algumas pedras, organismos secos, passas, catarros, pegadas de animais antigos, desenhos que vejo nas nuvens, cifras, letras de fumaça, rima feita de bosta, imensidão aprisionada numa cerca, besouros dentro do ouvido, fosforescência do organismo, batimento cardíaco comum a vários bichos, órgãos entranhados na matéria inerte, olhando a um só tempo do alto e de dentro para o enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou linguagem?
Como uma via intermediária, procuro entrar e permanecer no reino da pergunta - ou de uma explicação que não explica nunca. Assim, suspenso, murmuro um nome confuso a cada ser que chama minha atenção e toco com meu dedo a sua frágil solidez, fingindo que são homogêneos e contínuos. Posso, até mesmo, anotar em meu caderno características do que toco, como: "pinta-se de verde antes de reproduzir", "mostra extrema ansiedade antes do ocaso", ou "destila o breu dos carvalhos ao redor", mas não devo, em hipótese alguma, regredir à cadeia causal interminável, como um cachorro mordendo a cauda. Acabo por me conformar com uma vaga e humilde dispersão dos seres, fechados em seu desinteresse e incomunicabilidade de fundo, e como um modelo mal-ajustado ao modelo permaneço em meu torpor indagativo, deitado na relva, tentando unir pedaços de frases a pedaços de coisas vivas.
Nuno Ramos
no livro Ó
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