sábado, 12 de maio de 2018

acho que ouvi 
você se mexendo 
não o seu corpo
claramente o seu
pensamento 
às vezes é como
se eu pudesse ouvir
o seu pensamento
você sabe
o pensamento
não faz ruído algum
que barulho ele faz?
só você desdiz
com perguntas
água fervendo
chuva leve
esta vida
um livro que importa
sendo aberto
pela primeira vez


Laura Erber
lendo Carver

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Aquele dia

Essa é a mesa à qual me sento e essa é a mesa onde te amo bem muito essa diante de mim é a máquina de escrever, posta onde ainda ontem estava posto teu corpo com seus ombros curvados como os de um microscopista, com sua língua de rei baixando decretos, com sua língua de gato bebendo leite, com sua língua – e nós dois enrolados nela, escorregadia. Isso foi ontem, aquele dia. Aquele foi o dia da tua língua, tua língua que sai de teus lábios, dois viajantes, metade animal, metade pássaro enjaulados no teu átrio direito. Aquele foi o dia que segui as regras do rei, correndo pelas tuas veias, as vermelhas e as azuis, descendo minhas mãos pela tua espinha dorsal, rápida como um [paramédico, até entre as tuas pernas, onde se apresenta tua sabedoria interior, onde se escondem minas de diamantes, urgentes, mais surpreendentes que cidades reconstruídas. Em segundos está erguido, o monumento. O sangue, ainda que líquido, faz a torre. As pessoas deviam se juntar para admirar essa construção. Já que por um milagre elas jogam confete e esperam em filas. Certamente a imprensa aparecerá, em busca de uma manchete. Certamente alguém estará na calçada segurando um cartaz. 63 Se constroem uma ponte, o prefeito não vai lá cortar a faixa? Se em Belém nasce uma estrela, não aparecem reis com presentes? Ontem foi o dia em que eu trouxe presentes para o teu presente e vim de longe para te encontrar na calçada. Isso foi ontem, aquele dia. Aquele foi o dia do teu rosto, tua cara depois de transar, no travesseiro: uma canção de ninar. Meio dormindo ao meu lado, deixando aquele relógio velho parar, nossa respiração virou uma, juntas viraram uma respiração infantil, enquanto eu desenhava bolinhas nos teus olhos, enquanto eu desenhava risinhos na tua boca, enquanto eu desenhava TE AMO no teu peito, no coração batendo, e cochichei “acorda!” e tu murmuraste qualquer coisa: “sssssh estamos dirigindo até a praia. Atravessamos uma ponte. Passamos pela orla”. Praia! Então em teus sonhos eu te entendi e orei pelo dia em que eu seria a terra e tu as raízes e eu carregaria teu fruto, carregaria a ti ou a teu fantasma na minha horta interior. Ontem eu não queria me deixar levar mas é só a máquina de escrever que está na minha frente e ontem é onde o amor está.

Anne Sexton, tradução de Adelaide Ivanova

albert camus

se alguém tivesse me dito que seria assim
eu não teria acreditado
guerras civis
crise econômica
fim do mundo
eu e você
sobrevivemos a tudo isso
entre as nossas guerras
civis
as nossas crises
econômicas
os fins
dos nossos mundos
as separações
eu
no meu mundo
você
algures
se alguém tivesse me dito que seria assim
eu não teria acreditado
vinte anos
algumas guerras
aquecimento global
um golpe
outro golpe
eu e você no mundo

e ainda assim eu não teria acreditado:
sobrevivemos à adolescência
a maior das guerras
pais mortos mães
e eu não teria acreditado

se alguém tivesse me dito que seria assim
eu teria pensando
essas coisas só acontecem nos filmes
nas novelas
e nas novelas

eu nunca teria acreditado que apesar dos silêncios
desse dedo indicador na boca
sobreviveríamos
aos golpes
um
e outro
e um
ao outro

perdemos os melhores amigos
nossos melhores amantes
e apesar de tudo
ficamos
eu e você
no mundo
inabaláveis
inconcebíveis

sobrevivemos à morte
ao exílio
e nem isso
por abstração
ou vontade
nos termina

eu e você
existimos
um projeto impossível
incompleto e,
ao que parece, eterno

vinte anos é o tempo
de vida dos castores
dos porco-espinho
dos pardais
e de outros projetos que desconheço
e como eles
aqui estamos
na cidade
vinte anos depois
esvaziando copos
sem conseguir pagar a conta
perdendo o último metrô
mas aqui estamos
e não desistimos

apesar de tudo

você vai pro mundo
eu vou pra casa
separados por uma bússola
uma cidadania
um passaporte que não compartilho
mas unidos pelo desejo de não morrer
nem de estar
separados

eu te celebro
tua juventude
a que aparentas e a que trazes
contigo
a doçura da qual nunca fui destinatária
mas na qual confio:

eu sei que ela está aí

te levo comigo
como sempre te trouxe
nunca não estiveste
sempre comigo
numa tatuagem que não era pra você
mas que devia ter sido

te celebro
como nunca te deixei de celebrar
e te agradeço
todos os dias
por tudo
foste o primeiro homem
e ainda és


-
Adelaide Ivanova

Um tipo de perda

Juntos usamos: as estações do ano, livros e uma música.
As chaves, os saquinhos de chá, a cesta de pão, lençóis
e uma cama.
Herança de um vocabulário, de gestos, trazidos,
usados e gastos.
Obedecemos as regras do prédio. Dito. Feito. E a mão
sempre estendida.
Sempre me apaixonei pelo inverno, por um quinteto vienense
e pelo verão.
Por mapas, por uma casinha na montanha, por uma praia,
por uma cama.
Ritualizo datas, declaro incanceláveis as
promessas,
idolatro qualquer coisa e sou devota de coisa nenhuma,
( — do jornal dobrado, do cinzeiro cheio, do papelzinho
com um recado)
não tenho medo de religião, porque igreja era essa cama.
Da vista do mar nasceu essa pintura incansável.
Da varanda dava pra saudar os povos,
meus vizinhos.
Perto da lareira, em segurança, meu cabelo tinha
sua cor mais extrema.
O toque da campainha era o alarme da minha felicidade.
Não foi você que eu perdi,
foi o mundo.
-
Ingeborg Bachmann
trad. Adelaide Ivanova

PRIMAVERA

Por qual propósito, Abril, de novo retornas?
A Beleza não é suficiente.
Não podes me acalmar com a vermelhidão
Das folhinhas unidas se abrindo.
Eu sei o que sei.
O sol queima a nuca quando observo
Os espinhos do croco.
O cheiro de terra é bom.
É aparente que não há a morte.
Mas o que isso significa?
Não apenas sob a terra os cérebros
São comidos por vermes.
A vida em si
Não é nada,
Uma taça vazia, lance de escadas sem tapetes.
Não basta todo ano, descendo o morro,
Abril
Chegar como um tolo, balbuciando e espalhando flores.


Edna St. Vincent Millay
trad. Mariana Basílio

A time past

The old wooden steps to the front door
where I was sitting that fall morning
when you came downstairs, just awake,
and my joy at sight of you (emerging
into golden day —
the dew almost frost)
pulled me to my feet to tell you
how much I loved you:
those wooden steps
are gone now, decayed
replaced with granite,
hard, gray, and handsome.
The old steps live
only in me:
my feet and thighs
remember them, and my hands
still feel their splinters.
Everything else about and around that house
brings memories of others — of marriage
of my son. And the steps do too: I recall
sitting there with my friend and her little son who died,
or was it the second one who lives and thrives?
And sitting there ‘in my life,’ often, alone or with my husband.
Yet that one instant,
your cheerful, unafraid, youthful, ‘I love you too,’
the quiet broken by no bird, no cricket, gold leaves
spinning in silence down without
any breeze to blow them,
is what twines itself
in my head and body across those slabs of wood
that were warm, ancient, and now
wait somewhere to be burnt.

Denise Levertov
As you read, a white bear leisurely
pees, dyeing the snow
saffron
and as you read, many gods
lie among lianas: eyes of obsidian
are watching the generations of leaves,
and as you read
the sea is turning its dark pages,
turning
its dark page

Denise Levertov

LOVE SONG

Your beauty, which I lost sight of once
for a long time, is long,
not symmetrical, and wears
the earth colors that make me see it.
A long beauty, what is that?
A song
that can be sung over and over,
long notes or long bones.
Love is a landscape the long mountains
define but don’t
shut off from the
unseeable distance.
In fall, in fall,
your trees stretch
their long arms in sleeves
of earth-red and
sky-yellow, a little
lop-sided. I take
long walks among them. The grapes
that need frost to ripen them
are amber and grow deep in the
hedge, half-concealed,
the way your beauty grows in long tendrils
half in darkness.
Denise Levertov

domingo, 8 de abril de 2018

Tentativa de ciúme

"Como vai você com a outra?
(...)

Como vai você com a mulher

Comum? Sem nada de divino?
Sem soberana, sem sequer
Um trono (você foi o assassino),

Como vai, meu bem? Tudo a gosto?

E o dia-a-dia — sempre igual?
Como você se arranja com o imposto
Da banalidade imortal?

"Mil sobressaltos, incertezas —

Basta! Vou arrumar um teto!"
Como vai, com quem quer que seja —
O eleito pelo meu afeto?

A comida é melhor, mais familiar?

Diga a verdade. Como vai
Você com a imitação vulgar —
Você, que subiu ao Sinai?

Como é viver com uma estranha?

Você a ama? Não disfarce.
O chicote de Zeus da vergonha
Nenhuma vez lhe zurze a face?

E a saúde, vai bem? Que tal

A vida — uma canção? A ferida
Da consciência imortal
Como a suporta, meu querido?

Como vai você com o adereço

De feira? A taxa é muito cara?
Como é aspirar o pó do gesso
Depois do mármor de Carrara?

(Deus talhado em barro, termina

Em pedaços!) Como é o convívio
Com a milionésima da fila
Pra quem já conheceu Lilit?

As novidades de feira

Se acabaram? Farto de portentos,
Como é a vida corriqueira
Com a mulher terrena, sem sexto

Sentido? Vamos, tudo cor

De rosa? Ou não? Aí, nesse oco
Sem fundo, amor, como vai? Pior
Ou igual a mim com outro?"

Marina Tsvetaieva

tradução de Augusto de Campos

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Não me sinto seguro
Em parte alguma.
A aventura não termina.
Teus olhos brilham em todos os lugares
Não me sinto seguro
Nas palavras
No dinheiro
Nos espelhos.
A aventura nunca termina
e os teus olhos me procuram.


Roberto Bolaño,

em A universidade desconhecida
Tradução de Laura Erber
Agora o teu corpo é sacudido por 
pesadelos. Você já não é
o mesmo: que amou,
que se arriscou.
Você já não é o mesmo, embora amanhã talvez
tudo se desvaneça
como um sonho ruim e você comece
de novo. Talvez
amanhã comece de novo.
E o suor, e o frio,
os detetives erráticos,
sejam como um sonho.
Não desanime.
Agora você treme,
mas talvez
amanhã comece de novo.


Roberto Bolaño,

em A universidade desconhecida
Tradução de Laura Erber

A Francesa


Uma mulher inteligente
Uma mulher formosa
Conhecia todas as variantes, todas as possibilidades
Leitora dos aforismos de Duchamp e dos relatos de Defoe
Em geral com um autocontrole invejável
Salvo quando ficava deprimida e enchia a cara
Algo que podia durar dois ou três dias
Uma sucessão de bordéis e valiums
Que fariam de você um frangote
Então costumava contar histórias que lhe aconteceram
Entre os 15 e os 18
Um filme de sexo e terror
Corpos despidos e negócios no limite da lei
Uma atriz vocacional e ao mesmo tempo uma menina com
     estranhos traços de avareza
Conheci ela quando acabara de completar 25
Numa época tranqüila
Acho que tinha medo da velhice e da morte
A velhice para ela era os trinta anos
A Guerra dos Trinta Anos
Os trinta anos de Cristo quando começou a pregar
Uma idade como qualquer outra, disse-lhe enquanto jantávamos
à luz de velas
Contemplando o correr do rio mais literário do planeta
Mas para nós o prestígio estava em outra parte
Para os lados possuídos pela lentidão, nos gestos
     deliciosamente lentos do desequilíbrio nervoso
Nas camas escuras
Na multiplicidade geométrica das vitrines vazias
Na cova da realidade
Nosso luxo
Nosso absoluto
Nosso Voltaire
Nossa filosofia de cama e banho
Como dizia, uma moça inteligente
Com essa rara virtude vidente
(Rara para nós latino-americanos)
Que é tão comum em sua pátria
Onde até os assassinos tem uma caderneta de poupança
 e ela não deixaria por menos
Uma caderneta de poupança e uma foto de Tristán Cabral,
A nostalgia do não vivido
Enquanto aquele prestigioso rio arrastava o sol moribundo
E sobre suas bochechas corriam lágrimas aparentemente gratuitas
Não quero morrer sussurrava enquanto gozava
Na perspicaz escuridão do quarto
E eu não sabia o que dizer
Na verdade não sabia o que dizer
A não ser acariciá-la e segurá-la enquanto se movia
Pra cima e pra baixo com a vida
Pra cima e pra baixo como as poetas da França
Inocentes e castigadas
Até que voltava ao planeta Terra
E de seus lábios brotavam
Paisagens da adolescência que de improviso enchiam nosso
    quarto
Com duplicatas que choravam nas escadas rolantes do metrô
Com duplicatas que faziam amor com dois tipos por vez
    enquanto lá fora a chuva caia
Sobre os sacos de lixo e sobre as pistolas abandonadas
    nos sacos de lixo
A chuva que tudo lava
Menos a memória e a razão
Vestidos, jaquetas de couro, botas italianas, lingerie para
    enlouquecê-lo
Para enlouquecê-la
Apareciam e desapareciam em nosso quarto fosforescente e
     pulsátil
E rastros rápidos de outras aventuras menos íntimas
Fulguravam em seus olhos feridos como vaga-lumes
Um amor que não ia durar muito
Mas que até a sobremesa seria inesquecível
Disse isso
Debruçada na janela
Seu rosto suspenso no tempo
Seus lábios: os lábios de uma estátua
Um amor inesquecível
Sob a chuva
Sob esse céu eriçado de antenas onde conviviam
Os artesonados do Século XVII
Com as cagadas de pombo do Século XX
E no meio
Toda a inextinguível capacidade de provocar dor
Invicta através dos anos
Invicta através dos amores
Inesquecíveis
Disse isso, sim
Um amor inesquecível
E breve
Como um furacão?
Não, um amor breve como um suspiro de uma cabeça guilhotinada
A cabeça de um rei ou de um conde bretão
Breve como a beleza
A beleza absoluta
A que contém toda a grandeza e a miséria do mundo
E que só é visível para aqueles que amam

A Francesa,
de Roberto Bolaño

Musa



Era mais bela que o sol
e eu ainda não tinha 16 anos.
24 se passaram
e ela segue a meu lado.

Às vezes a vejo caminhar
sobre as montanhas: anjo da guarda
de nossas preces.
É o sonho que regressa

com a promessa e o assovio.
O assovio que nos chama
e que nos perde.
Em seus olhos vejo os rostos

de todos meus amores perdidos.
Ah, Musa, proteja-me, eu rogo,
nos dias terríveis
da aventura incessante.

Nunca me deixe.
Guia meus passos e os passos
de meu filho Lautaro.
Deixe-me sentir a ponta de seus dedos

novamente em minhas costas,
incentivando-me quando tudo estiver escuro,
quando tudo estiver perdido.
Deixa-me ouvir o assovio novamente.

Sou seu fiel amante
ainda que às vezes o sonho
me separe de você.
Você é, também, a rainha dos sonhos.

Minha amizade é sua todos os dias
e algum dia
sua amizade me salvará
do terreno baldio do esquecimento.

Pois, mesmo que você venha
enquanto eu vou
no âmago somos amigos
inseparáveis.

Musa, onde quer
que eu vá
você vai.
Vi você nos hospitais

e na fila
dos presos políticos.
Vi você nos olhos terríveis
de Edna Lieberman

e nos becos
dos bandoleiros.
E sempre me protegeu!
Na derrota e na loucura.

Nos relacionamentos doentios
e na crueldade,
sempre esteve comigo.
E ainda que passem os anos

e o Roberto Bolaño da Alameda
e da Livraria de Cristal
se transforme,
se aquiete,

se torne mais imbecil e mais velho
você permanecerá bela como sempre.
Mais que o sol
e que as estrelas.

Musa, onde quer
que você for
eu vou.
Sigo seu rastro radiante

através da noite imensa.
Sem me importar com a idade
ou com a doença.
Sem me importar com a dor

ou o esforço que hei de fazer
para te seguir.
Porque com você posso atravessar
a cidade destruída

e sempre encontrarei a porta
que me devolva
à Quimera,
porque você está comigo,

Musa,
mais bela que o sol
e mais bela
que as estrelas.

Musa
Roberto Bolaño