quinta-feira, 5 de abril de 2018

A Francesa


Uma mulher inteligente
Uma mulher formosa
Conhecia todas as variantes, todas as possibilidades
Leitora dos aforismos de Duchamp e dos relatos de Defoe
Em geral com um autocontrole invejável
Salvo quando ficava deprimida e enchia a cara
Algo que podia durar dois ou três dias
Uma sucessão de bordéis e valiums
Que fariam de você um frangote
Então costumava contar histórias que lhe aconteceram
Entre os 15 e os 18
Um filme de sexo e terror
Corpos despidos e negócios no limite da lei
Uma atriz vocacional e ao mesmo tempo uma menina com
     estranhos traços de avareza
Conheci ela quando acabara de completar 25
Numa época tranqüila
Acho que tinha medo da velhice e da morte
A velhice para ela era os trinta anos
A Guerra dos Trinta Anos
Os trinta anos de Cristo quando começou a pregar
Uma idade como qualquer outra, disse-lhe enquanto jantávamos
à luz de velas
Contemplando o correr do rio mais literário do planeta
Mas para nós o prestígio estava em outra parte
Para os lados possuídos pela lentidão, nos gestos
     deliciosamente lentos do desequilíbrio nervoso
Nas camas escuras
Na multiplicidade geométrica das vitrines vazias
Na cova da realidade
Nosso luxo
Nosso absoluto
Nosso Voltaire
Nossa filosofia de cama e banho
Como dizia, uma moça inteligente
Com essa rara virtude vidente
(Rara para nós latino-americanos)
Que é tão comum em sua pátria
Onde até os assassinos tem uma caderneta de poupança
 e ela não deixaria por menos
Uma caderneta de poupança e uma foto de Tristán Cabral,
A nostalgia do não vivido
Enquanto aquele prestigioso rio arrastava o sol moribundo
E sobre suas bochechas corriam lágrimas aparentemente gratuitas
Não quero morrer sussurrava enquanto gozava
Na perspicaz escuridão do quarto
E eu não sabia o que dizer
Na verdade não sabia o que dizer
A não ser acariciá-la e segurá-la enquanto se movia
Pra cima e pra baixo com a vida
Pra cima e pra baixo como as poetas da França
Inocentes e castigadas
Até que voltava ao planeta Terra
E de seus lábios brotavam
Paisagens da adolescência que de improviso enchiam nosso
    quarto
Com duplicatas que choravam nas escadas rolantes do metrô
Com duplicatas que faziam amor com dois tipos por vez
    enquanto lá fora a chuva caia
Sobre os sacos de lixo e sobre as pistolas abandonadas
    nos sacos de lixo
A chuva que tudo lava
Menos a memória e a razão
Vestidos, jaquetas de couro, botas italianas, lingerie para
    enlouquecê-lo
Para enlouquecê-la
Apareciam e desapareciam em nosso quarto fosforescente e
     pulsátil
E rastros rápidos de outras aventuras menos íntimas
Fulguravam em seus olhos feridos como vaga-lumes
Um amor que não ia durar muito
Mas que até a sobremesa seria inesquecível
Disse isso
Debruçada na janela
Seu rosto suspenso no tempo
Seus lábios: os lábios de uma estátua
Um amor inesquecível
Sob a chuva
Sob esse céu eriçado de antenas onde conviviam
Os artesonados do Século XVII
Com as cagadas de pombo do Século XX
E no meio
Toda a inextinguível capacidade de provocar dor
Invicta através dos anos
Invicta através dos amores
Inesquecíveis
Disse isso, sim
Um amor inesquecível
E breve
Como um furacão?
Não, um amor breve como um suspiro de uma cabeça guilhotinada
A cabeça de um rei ou de um conde bretão
Breve como a beleza
A beleza absoluta
A que contém toda a grandeza e a miséria do mundo
E que só é visível para aqueles que amam

A Francesa,
de Roberto Bolaño

Nenhum comentário:

Postar um comentário