Essa é a mesa à qual me sento
e essa é a mesa onde te amo bem muito
essa diante de mim é a máquina de escrever, posta
onde ainda ontem estava posto teu corpo
com seus ombros curvados como os de um microscopista,
com sua língua de rei baixando decretos,
com sua língua de gato bebendo leite,
com sua língua – e nós dois enrolados nela, escorregadia.
Isso foi ontem, aquele dia.
Aquele foi o dia da tua língua,
tua língua que sai de teus lábios,
dois viajantes, metade animal, metade pássaro
enjaulados no teu átrio direito.
Aquele foi o dia que segui as regras do rei,
correndo pelas tuas veias, as vermelhas e as azuis,
descendo minhas mãos pela tua espinha dorsal, rápida como um
[paramédico,
até entre as tuas pernas, onde se apresenta tua sabedoria interior,
onde se escondem minas de diamantes, urgentes,
mais surpreendentes que cidades reconstruídas.
Em segundos está erguido, o monumento.
O sangue, ainda que líquido, faz a torre.
As pessoas deviam se juntar para admirar essa construção.
Já que por um milagre elas jogam confete e esperam em filas.
Certamente a imprensa aparecerá, em busca de uma manchete.
Certamente alguém estará na calçada segurando um cartaz.
63
Se constroem uma ponte, o prefeito não vai lá cortar a faixa?
Se em Belém nasce uma estrela, não aparecem reis com presentes?
Ontem foi o dia em que eu trouxe presentes para o teu presente
e vim de longe para te encontrar na calçada.
Isso foi ontem, aquele dia.
Aquele foi o dia do teu rosto,
tua cara depois de transar, no travesseiro: uma canção de ninar.
Meio dormindo ao meu lado, deixando aquele relógio velho parar,
nossa respiração virou uma, juntas viraram uma respiração infantil,
enquanto eu desenhava bolinhas nos teus olhos,
enquanto eu desenhava risinhos na tua boca,
enquanto eu desenhava TE AMO no teu peito, no coração batendo,
e cochichei “acorda!” e tu murmuraste qualquer coisa:
“sssssh estamos dirigindo até a praia. Atravessamos uma
ponte. Passamos pela orla”. Praia!
Então em teus sonhos eu te entendi e orei pelo dia
em que eu seria a terra e tu as raízes
e eu carregaria teu fruto, carregaria
a ti ou a teu fantasma na minha horta interior.
Ontem eu não queria me deixar levar
mas é só a máquina de escrever que está na minha frente
e ontem é onde o amor está.
Anne Sexton, tradução de Adelaide Ivanova
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